Tibetanos trabalham intensamente para salvar crustáceo minúsculo"A Ideologia, a crença e Valorização da Vida, por menor que ela seja "
Com um conjunto de hashis nas mãos e uma oração tibetana nos lábios, Gelazomo, pastora de iaques de 32 anos, inclinou-se sobre a margem rochosa do rio que atravessa a cidade e procurou pelos animaizinhos que ela acreditava que trariam salvação.De tempos em tempos, ela removia um pequeno camarão que havia ficado preso na lama, e então o jogava dentro de um balde com água. Ao lado dela, dezenas de outros tibetanos labutavam sob o sol do meio dia, entre eles criancinhas e idosos que, de longe, pareciam estar garimpando ouro.
— Buda nos ensinou que tratar o próximo com amor e compaixão é a coisa certa a fazer, não importa o quão pequena seja essa vida — ela explicou, enquanto os crustáceos recém-salvos se lançavam do seu balde para a água.
Os budistas são incentivados a demonstrar reverência a todos os seres sencientes; alguns adeptos rejeitam a carne, enquanto outros compram animais destinados à morte e os libertam. Aqui em Yushu, cidade de maioria tibetana, onde mais de 3 mil pessoas morreram em um terremoto há quatro anos, os devotos têm se reunido no Rio Batang a fim de resgatar o minúsculo crustáceo que dificilmente mereceria tamanha atenção.
Os monges budistas afirmam que o interesse crescente na "libertação de vidas" ou "soltura de misericórdia", como às vezes é chamada, é parte de um aumento da devoção religiosa após o terremoto que destruiu boa parte de Yushu. As doações aos monastérios da região aumentaram, segundo eles, assim como os atos comuns de gentileza entre os desconhecidos nessa cidade de 120 mil habitantes, situada a aproximadamente 2092 quilômetros a nordeste de Hong Kong.
— Não salvo essas vidas apenas para mim e para a minha família, mas também para todas as pessoas que morreram no terremoto — disse Gelazomo, que como muitas tibetanas é chamada apenas pelo primeiro nome. Trabalhando com seu bebê amarrado nas costas, ela disse que a perda e o trauma vivenciados por tantas pessoas em Yushu haviam fortalecido o comprometimento com os ensinamentos budistas que enfatizam o respeito por todos os seres vivos.
Vários outros disseram que os pequenos seres poderiam muito bem ser a alma reencarnada de parentes ou de amigos que pereceram no terremoto.
O nômade Chenrup, de 67 anos, contou que a possibilidade de renascer como uma mosca ou como um cachorro não poderia ser descartada.
— Temos os mesmo sentimentos pelos peixes. É nosso dever libertá-los da dor e do sofrimento — disse Chenrup, vegetariano que passa oito horas por dia escavando a lama.
Desde cedo até o pôr do sol, os salvadores de almas trabalham para extrair criaturas que ficaram presas quando o rio, que é alimentado pelas montanhas cobertas de neve, baixa no verão. Os camarões, mais ou menos do tamanho de uma unha, são difíceis de ver na lama ressecada pelo sol e só são avistados quando se contorcem levemente. Após serem coletados em baldes ou em copos descartáveis, são devolvidos rio.
Das milhares de bandeiras de preces multicoloridas que tremulam pelas montanhas áridas até os monastérios vistos nos vales mais remotos, a devoção religiosa engloba todos os aspectos da vida no Planalto Tibetano. Embora muitas pessoas aqui consumam carne, – e a pecuária sustente a maioria das famílias rurais – não é incomum ver iaques ou cabras enfeitadas com pedaços de fios coloridos, um sinal de que suas vidas foram poupadas. Em todo o Planalto, a prática da libertação sustenta uma mini-indústria em crescimento. Desde 2008, o Monastério Kilung na província de Sichuan salvou centenas de iaques, ovelhas e cabras através de um programa financiado, em grande parte, pelos devotos no exterior. Por 1000 dólares um iaque e 100 dólares uma cabra, os participantes conseguem comprar um animal a caminho do matadouro. Uma família nômade também irá separar um animal do rebanho e o dedicará ao fornecimento de lã (US$ 165) ou de leite (US$ 35). O monastério aceita pagamentos online, inclusive com Visa e MasterCard.
Os monges locais reconhecem que o costume tem um impacto insignificante no número de animais destinados ao abate, mas afirmam que isso serve para lembrar as pessoas sobre a santidade da vida e também pode produzir benefícios concretos para os seguidores. Em um ensaio escrito para seus seguidores, Chatral Rinpoche, personalidade religiosa do Tibete, com 101 anos de idade, e que dizem ter resgatado mais de um milhão de animais em sua vida, declarou que a libertação de misericórdia podia trazer melhores safras e vidas mais saudáveis e mais longas aos adeptos.
"Não existe crime maior que tirar uma vida, e nenhuma virtude traz maior mérito que o ato de salvar seres e resgatar as suas vidas. Portanto, caso deseje a felicidade e o bem-estar, siga esse que é o mais supremo dos caminhos", ele escreveu em um ensaio de ampla circulação.
Na medida em que números cada vez maiores de chineses redescobrem o budismo, após décadas de ateísmo imposto pelo estado, a libertação dos animais virou uma maneira popular de expressar a devoção religiosa, especialmente entre os moradores da classe média da cidade, que compram tartarugas ou peixes dos mercados e os libertam em parques ou nos lagos dos templos.
O costume, no entanto, tem seus opositores, que afirmam que libertar criaturas tropicais em climas do norte produz um tipo diferente de morte cruel – através das temperaturas congelantes do inverno. Em toda a Ásia, especialmente nas cidades com grandes comunidades, os pássaros presos são soltos fora dos templos; uma vez soltos, eles às vezes são capturados novamente e revendidos, porém, mais frequentemente, não conseguem se defender sozinhos e morrem.
O costume, segundo os ambientalistas, também leva à introdução de espécies invasoras, com consequências potencialmente destrutivas. Nos Estados Unidos, o peixe cabeça-de-cobra, um predador voraz da China que acredita-se tenha sido solto durante as cerimônias de libertação de misericórdia, foi encontrado desde as águas do Rio Potomac até o Lago Michigan, assustando os pescadores de robalo e os biólogos que se preocupam com o potencial do cabeça-de-cobra de consumir e eliminar as espécies nativas.
Em Yushu, que também é conhecida por seu nome tibetano Jiegu, as montanhas e rios são tidos como locais sagrados e os tibetanos comuns demonstram uma profunda apreciação pela paisagem ecologicamente frágil que os sustentam.
Nos últimos anos, os manifestantes tentaram bloquear as operações da mineração clandestina, provocando conflitos violentos dentro da Reserva Natural Fonte dos Três Rios, uma área de proteção ambiental perto de Yushu que contém as nascentes dos Rios Yangtzé, o Amarelo e o Mekong.
Em agosto, dezenas de pessoas ficaram feridas após a polícia utilizar bastões, gás lacrimogêneo e choque elétrico para dispersar uma grande manifestação de três dias do lado de fora de uma mina de diamantes a céu aberto, segundo os grupos de exílio tibetanos.
Chuyan Dorjee, de 26 anos, monge que se uniu às multidões escavando ao longo do Rio Batang em uma manhã recente, explicou por que muitos tibetanos tinham convicções tão profundas sobre a proteção do meio ambiente.
— Se os seres humanos querem sobreviver neste mundo, temos de proteger os animais e o capim. Somos todos interligados. Se eles não tiverem lugar para viver, nós não teremos lugar para viver — ele disse.
A visão de tantas pessoas trabalhando ao sol, muitas delas com os seus 70 e 80 anos, era contagiante. Entre os escavadores estava Ha Kaimu, de 20 anos, um vendedor de meias e roupas íntimas que tirou um dia de folga da sua barraca no mercado local.
Kaimu, muçulmano da etnia Hui, que recentemente se mudou da província vizinha de Gansu para Yushu, disse ter ficado profundamente emocionado pelo ato coletivo de benevolência.
— Em minha cidade natal, se houvesse um animal bem maior enfrentando tal situação, ninguém moveria um dedo, mas vejam essas pessoas trabalhando para salvar uma criatura minúscula. Como é possível não se emocionar? — ele disse, enquanto várias mulheres lhe ofereciam um sincero sinal de positivo
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