domingo, 15 de dezembro de 2013

O DESEJO: TANTO PODE NUTRIR NOSSA EXISTÊNCIA QUANTO ENVENENÁ-LA.



Ninguém discute o fato de que é natural ter desejo e que ele tem um papel motivacional em nossa vida. Mas há uma diferença crucial entre as profundas aspirações que temos ao longo da nossa vida e o desejo, que não é mais do que um avidez, um tormento, uma obsessão. O desejo pode assumir formas infinitamente variadas: podemos desejar um copo de água fresca, alguém que amamos, um momento de paz, a felicidade alheia; podemos também desejar a nossa própria morte. O desejo tanto pode nutrir a nossa existência quanto envenená-la.
 
Ele também pode expandir, liberar-se, aprofundar-se e até transformar-se em uma aspiração: a de fazer de si mesmo um ser humano melhor, de trabalhar pelo bem dos outros e atingir o despertar espiritual. É importante, assim, estabelecer uma distinção entre o desejo, que é essencialmente uma força cega, e a aspiração, que é precedida por uma motivação e por uma atitude. Se essa motivação é ampla e altruísta, pode ser fonte das maiores qualidades e realizações humanas. Se é estreita e egocêntrica, alimenta as intermináveis preocupações da vida cotidiana, que se seguem uma às outras como ondas, desde o nascimento até a morte, não trazendo nenhuma garantia de satisfação profunda. Quando essa motivação é negativa, pode dar livre curso a destruições devastadoras.
Por mais natural que seja, o desejo rapidamente se degenera em “veneno mental”, assim que se transforma em um imperativo, uma obsessão ou um apego incontrolável. Um desejo como esse é tão mais frustrante e alienador quanto mais estiver em desacordo com a realidade. Quando estamos obcecados por uma coisa ou pessoa, nós construímos erroneamente uma imagem como se ela fosse cem por cento desejável e possuí-la ou desfrutá-la tornar-se uma necessidade absoluta. A avidez não causa apenas tormentos e angústias; essa posse, ou poderíamos até dizer essa “possessão” daquilo que desejamos, em qualquer situação, só pode ser precária, momentânea, e está sob constante ameaça. É também ilusória, no sentido de que em última análise temos muito pouco controle sobre aquilo que pensamos possuir. Como ensinou o Buda: “Vítima do desejo, como um macaco na floresta, você salta de galho em galho sem jamais encontrar uma fruta, e de vida sem jamais encontrar a paz”.
 Os desejos apresentam diferentes graus de duração e intensidade. Um desejo menor, como o de tomar uma xícara de chá ou um bom banho quente, pode, na maior parte das vezes, ser satisfeito com facilidade, sendo frustrado apenas se as condições externas forem muito contrárias. Há ainda desejos como o de ser aprovado em um exame, comprar um carro ou uma casa, quando a realização pode apresentar algumas dificuldades possíveis de vencer pela perseverança e engenhosidade. Finalmente, existe um nível mais básico de desejo, como o de construir uma família, ser feliz na companhia de alguém que escolhemos ou trabalhar com algo de que gostamos.
Realizar esses desejos requer muito tempo, e a quantidade de vida gerada por eles depende tanto das nossas aspirações mais profundas quanto da orientação que pretendemos dar à nossa vida. Queremos que as nossas ações tragam felicidade para a nossa vida ou só buscamos ganhar dinheiro e conseguir um certo status na sociedade? Estabelecemos com nosso cônjuge uma relação de posse ou de reciprocidade altruísta? Qualquer que seja a nossa escolha, participamos todos os dias e em qualquer lugar da dinâmica do desejo.
Em nossos dias, o desejo nunca para de ser alimentado e amplificado pela imprensa, pelo cinema, pela literatura e pela publicidade. Ele nos faz dependentes da intensidade das nossas emoções, por conduzir apenas satisfações de curta duração. Não temos, por outro lado, nem mesmo tempo de avaliar a medida da frustação que nos advém de todos os desejos irrealizáveis, porque outras solicitações logo chegam para substituí-los; distraídos, deixamos sempre para depois esse exame, como também as ações que poderiam nos trazer um sentimento de plenitude digno desse nome. E o carrossel continua a girar.
Em Hong Kong alguns desses jovens leões do mercado financeiro, que dormem no chão do escritório em sacos de dormir para poder acordar no meio da noite e, ligados nos computadores, “pegar” a Bolsa de Nova Iorque antes do fechamento. Também eles, à sua maneira, tentam ser felizes, mas sem muito sucesso. Um deles me confidenciou que vai para a praia uma ou dias vezes por ano e fica olhando para o mar, quase surpreendido, vendo como é belo. Nesses momentos acaba refletindo: “Como é estranha a minha vida… e, no entanto, lá vou eu de novo na segunda-feira de manhã”. Falta de senso de prioridade? Falta de coragem? Ficamos grudados na imagem refletida da ilusão, sem usar o tempo livre que nos resta para permitir que, das profundezas mais abissais de nós mesmos, surja a questão: “O que eu realmente quero da minha vida?” Uma vez que tenhamos obtidos uma resposta, sempre haverá tempo para pensar sobre como conseguir o que se quer. Mas não é triste e trágico abafar essa questão?
O DESEJO ALIENANTE
 O budismo não recomenda a abolição dos desejos simples nem das aspirações essenciais, mas a obtenção da liberdade no que tange aos desejos escravizadores, aqueles que nos trazem uma multidão de tormentos inúteis. O desejo de alimentar-se quando se tem fome, a aspiração de trabalhar pela paz do mundo, a sede de conhecimento, o desejo de partilhar a nossa vida com os entes queridos, o ânimo que nos incita à liberação do sofrimento: desde que esses desejos não sejam matizados pela avidez e não exijam que obtenhamos aquilo que não pode ser obtido, todos eles podem contribuir para a nossa satisfação profunda. Quando temos uma coisa, queremos uma segunda, e depois uma terceira, e assim por diante. Como terminará isso? Só a derrota ou o cansaço podem fazer cessar, momentaneamente, essa sede de posses, de sensações ou de poder.
OS MECANISMOS DO DESEJO
A sede de sensações prazerosas é fácil de instalar-se na mente, já que o prazer é obsequioso, amável e está sempre pronto a oferecer-nos os seus serviços. Ele é atraente, inspira confiança e com algumas imagens convincentes consegue afastar qualquer hesitação. O que deveríamos temer em uma oferta tão tentadora? Nada é mais fácil do que tomar o caminho do prazer. Mas a exultação desses primeiros passos dura pouco e logo dá lugar à decepção de nossas expectativas ingênuas e ao sentimento de solidão que acompanha a saciedade dos sentidos. Os prazeres, uma vez satisfeitos, não permanecem, não são acumuláveis, não se conservam e não frutificam: eles desaparecem. Não é nada realista esperar que algum dia eles nos tragam uma felicidade duradoura.
Arthur Schopenhauer, o grande filósofo pessimista, declarou: “Todo desejo nasce de uma falta, de um estado ou uma condição que não nos satisfazem; portanto, enquanto não for satisfeito, ele é sofrimento. Mas nenhuma satisfação é duradoura; ao contrário, sempre é apenas um ponto de partida para novos desejos. Em todo lugar, vemos desejos sendo frustrados e impedidos de se realizar, de diversas maneiras; por toda parte vemos pessoas lutando por eles, e assim eles sempre aparecem como sofrimento. Não há término para o esforço, não há medida e não há fim para o sofrimento.” 1 Essa afirmação é verdadeira mas incompleta. Ela parte do princípio de que não podemos escapar do desejo e do sofrimento por ele perpetuado. Para superar essa condição, precisamos saber como o desejo é criado.
A primeira constatação é de que todo desejo apaixonado (não estamos falando aqui de sensações primárias como a fome ou a sede) é precedido por um sentimento e uma representação mental. A formação dessa imagem pode ser desencadeada por um objeto exterior (uma forma, um som, uma textura, um cheiro ou um gosto) ou interior (uma memória ou um devaneio). Mesmo que sejamos influenciados por tendências latentes, e mesmo que o desejo – primariamente sexual – esteja inscrito na nossa constituição física, ele não pode se expressar sem uma representação mensal. Ele pode ser voluntário ou, aparentemente, se impor sobre a nossa imaginação; pode se formar lentamente ou tão rápido quanto a luz, sub-reptícia ou abertamente; mas a representação sempre precede o desejo ativo, porque o seu objeto deve se refletir nos nosso pensamentos. Por influência do desejo consideramos uma dada pessoa como inerentemente desejável e vemos suas qualidades de maneira exagerada, enquanto minimizamos seus defeitos. “O desejo embeleza os objetos sobre os quais pousa suas asas de fogo”, escreveu Anatole France. Não podemos desejar uma sensação se não a considerarmos agradável. Compreender esse processo nos ajuda a acelerar o diálogo interior que nos permitirá superar o desejo aflitivo.
Esse ponto de vista do budismo é próximo àquele apresentado pelas ciências cognitivas. Segundo Aaron Beck, as emoções são sempre geradas pela cognição e não o contrário. Pensar em uma pessoa atraente dá origem ao desejo, pensar no perigo gera o medo, pensar em uma perda provoca tristeza e pensar que um limite foi transgredido desencadeia a raiva. Quando sentimos uma dessas emoções, não é muito difícil reconstituir o encadeamento de pensamentos que conduziu a ela.
Por sua parte, Seligman afirma: “Há trinta anos, a revolução trazida pela psicologia cognitiva derrubou ao mesmo tempo Freud e os behavioristas, pelo menos nos meios acadêmicos [...]. Segundo a teoria freudiana clássica, com efeito, são as emoções que determinam o conteúdo dos pensamentos.” 2 Este último ponto de vista talvez seja correto nos casos das crises emocionais que, à primeira vista, nos parecem irracionais; nas crises de angústia agudas; ou nas fobias graves que são a expressão de fixações formadas no passado. Isso não diminui o fato de que essas tendências resultem de uma acumulação de imagens e de pensamentos.
Geralmente, uma vez que o desejo começou a se estabelecer na mente por meio das imagens mentais a ele ligadas, ou nós o satisfazemos ou o reprimimos. O primeiro caso representa uma capitulação do autocontrole; o segundo, desencadeia um conflito. O conflito interior criado pela repressão é sempre uma fonte de tormento. Há a opção de entregar-se ao desejo. É como dizer: “Por que tornar tudo tão complicado? Vamos satisfazer o desejo e não se fala mais nisso.” O problema é que nós nunca vamos nos satisfazer: essa satisfação é um mero adiamento de novos desejos. As imagens mentais vão sendo criadas pelo desejo e ressurgem com rapidez. Quanto mais satisfazemos os nossos desejos, mais essas imagens se multiplicam, nos invadem e aprisionam. Quanto mais água salgada bebemos, mais sedentos ficamos. O repetido reforço das imagens mentais leva à adição e à dependência, tanto mental quanto física. Quando chegamos a esse ponto, a experiência do desejo e sentida mais como escravidão do que como prazer. Perdemos a nossa liberdade.
Outro exemplo clássico é o da coceira. Queremos instintivamente aliviá-la, coçando-nos. Esse coçar é certamente agradável no instante em que o fazemos, as a coceira não tarda a voltar, mais irresistível do que nunca, e acabamos por voltar a nos coçar – até sangrar. Confundimos coçar com curar. Quando decidimos não nos coçar mais, apesar do forte anseio que persiste, não é porque a vontade não esteja presente, mas porque aprendemos com a experiência que isso leva à dor e que se deixarmos acalmar o fogo da coceira, o tormento logo passará. Não se trata de uma repressão doentia, nem de uma questão de moral ou de princípios, mas de uma ação inteligente em que preferimos um bem-estar durável à alternância entre alívio e dor. Trata-se de uma medida prática, baseada na análise e no bom senso. O filósofo budista indiano do século II, Nagarjuna, resume esse processo: “É bom coçar-se quando vem a coceira, mas é melhor quando ela não vem. É bom satisfazermos os nossos desejos, mas é melhor quando estamos livres deles” 3. O principal obstáculo a essa liberdade é nossa resistência a toda forma de mudança interior que acarrete esforço. Preferimos declarar, corajosamente: “Quanto a mim, escolhi me coçar”.
É possível tornar-se mais atento à maneira como se formam as imagens mentais e adquirir a compreensão, e depois o controle, sobre a evolução dessas imagens. A repressão (ou a satisfação) só acontecerá quando a intensidade do desejo tornar-se tal que seria doloroso insistir em não realizá-lo. Mas no caso em que as imagens mentais se formam e se desfazem naturalmente, não há nem intensificação nem repressão do desejo. No capítulo dedicado aos antídotos, examinamos diversos métodos ou técnicas para conservar a liberdade quando ele está presente, sem no entanto reprimi-lo. À medida que a força das imagens mentais diminui, não nos submetemos mais ao desejo, e isso pode ocorrer sem que tenhamos que lançar mão da menor atitude repressiva. As poucas imagens que ainda surgirem não são mais do que centelhas fugidias no espaço da mente.

DO DESEJO À OBSESSÃO

O desejo obsessivo que costuma acompanhar o amor apaixonado deturpa a afeição, a ternura e a alegria de apreciar e compartilhar a vida com alguém. Ele é o oposto do amor altruísta. Surge de um egocentrismo doentio que acarinha a si mesmo no outro ou, ainda pior, busca construir a própria felicidade às expensas do outro. Esse tipo de desejo só quer se apropriar das pessoas, dos objetos e das situações que o atraem para ter controle. Considera a atração como uma característica inerente àquela pessoa, cujas qualidades ele amplia, enquanto subestima os defeitos. “O desejo embeleza os objetos sobre os quais pousa as suas asas de fogo” 4, ressaltou Anatole France.

A paixão romântica é o maior exemplo desse tipo de cegueira. Eis como o dicionário define paixão: “Um amor poderoso, exclusivo e obsessivo. Afetividade violenta que atrapalha o julgamento.” Ela é alimentada pelo exagero e pela ilusão e insiste em que as coisas sejam outras, diferentes de como realmente são. Como uma miragem, o objeto idealizado é insaciável e fundamentalmente frustrante.
E quando ocorre uma louca paixão sexual? Podemos concordar com Christian Boiron, escritor e CEO, segundo o qual “a atração sexual não é patológica, mas também não é uma emoção. É a expressão normal de um desejo, como a fome e a sede”. 5 Mesmo assim, ela faz surgir em nós as mais poderosas emoções porque sua força deriva dos cinco sentidos: visão, tato, audição, paladar e olfato. Na ausência da liberdade interior, qualquer experiência sensorial intensa engendra apegos e nos subjuga cada vez mais. Ela se parece com o redemoinho de um rio: nós não lhe damos muita atenção, pensamos que podemos nadar ali sem problemas, mas quando o turbilhão acelera e fica mais profundo, somos sugados para dentro dele sem nenhuma esperança de resgate. Já a pessoa que consegue manter uma perfeita liberdade interior experimenta todas essas sensações na simplicidade do momento presente, com o deleite de uma mente livre de apegos e expectativas.
O desejo obsessivo é reflexo da intensidade e da frequência das imagens mentais que o desencadeiam. Como um disco riscado, fica repetindo o mesmo leitmotiv. É uma polarização do universo mental, uma perda de fluidez, que prejudica a liberdade interior. Alain escreveu: “Este amante desprezado, que se contorce sobre a cama em vez de dormir e que medita sobre vinganças terríveis. O que sobraria da sua ferida se ele não pensasse mais sobre o passado e sobre o futuro? Este ambicioso, ferido no coração por um fracasso, onde procurará ele sua dor, senão em um passado que ressuscita e em um futuro que inventa?” 6
Essas obsessões tornam-se muito dolorosas quando não são atendidas e vão ficando cada vez mais fortes quando o são. O universo da obsessão é um mundo onde a urgência se vincula à impotência. Somos pegos por uma engrenagem de tendências e pulsões que conferem à obsessão um caráter lancinante. Outra de suas características é a insatisfação fundamental que ela suscita. Ela não conhece a alegria e muito menos a plenitude ou a realização. Não poderia ser de outra maneira, já que aquele que é vítima da obsessão insiste em buscar alívio exatamente naquelas situações que são as causas do seu tormento. O dependente de drogas reforça a sua dependência, o alcoólatra bebe até chegar ao delírio, o amante desprezado olha para a foto da sua amada o dia todo. A obsessão gera um estado de sofrimento crônico e de ansiedade, aos quais se somam, por sua vez, o desejo e a repulsa, a insaciabilidade e a exaustão. Na verdade, ela é um adendo às causas do sofrimento.
Estudos indicam que diferentes regiões do cérebro e diferentes circuitos neurais estão em ação quando “queremos” alguma coisa e quando “gostamos” dela. Isso nos ajuda a compreender pelo qual, quando nos acostumamos a sentir certos desejos, tornamo-nos dependentes deles – continuamos a sentir a necessidade de satisfazê-los mesmo quando já não gostamos do sentimento que provocam. Chegamos ao ponto de desejar sem gostar, desejar sem amar. 7 No entanto, podemos querer ser livres da obsessão, que machuca porque nos compele a desejar aquilo que não nos agrada mais. Podemos, também, amar alguma coisa ou alguém sem necessidade desejá-los.
Pesquisadores implantaram, em determinada região do cérebro de ratos, eletrodos que produziam sensações de prazer quando estimulados. Os ratos descobriram que podiam aumentar a intensidade do prazer ao apoiar os eletrodos em uma barra. A sensação de prazer era tão intensa que eles logo abandonaram todas as outras atividades, inclusive a alimentação e o sexo. A busca dessa sensação transformou-se em uma sede insaciável, uma necessidade incontrolável, e os ratos pressionaram a barra até caírem mortos de exaustão.

DESEJO, AMOR E APEGO
Como distinguir entre o amor verdadeiro e o apego possessivo? O amor altruísta pode ser comparado ao som puro que vem de um copo de cristal, e o apego ao dedo que, ao tocar a beira do copo, abafa esse som. Reconhecemos desde o princípio que a ideia de uma mor desprovido de apego é relativamente estranha à sensibilidade ocidental. Ser desapegado não significa que amamos menos a pessoa, mas que não estamos centrados no amor por nós mesmos nos escondendo no amor que dizemos sentir pelo outro. O amor altruísta é a alegria de compartilhar da vida daqueles que estão à nossa volta – os nosso familiares, os nossos amigos, os nossos companheiros, a nossa esposa ou o nosso marido – e contribuir para a felicidade deles. Amamos o outro por aquilo que ele é e não através da lente distorcida do egocentrismo. Em vez de ficarmos apegados ao outro, temos que ter em mente a felicidade dele; em vez de esperar que ele nos traga alguma gratificação, podemos receber o seu amor recíproco com alegria.
E depois podemos ir ampliando e estendendo esse amor. É preciso ser capaz de amar todas as pessoas incondicionalmente. Amar um inimigo – isso é pedir demais? Esse empreendimento pode parecer impossível, mas baseia-se em uma observação muito simples: a de que todos os seres, sem exceção, querem evitar o sofrimento e conhecer a felicidade. O amor altruísta genuíno é o desejo de que isso possa se realizar. Se o amor que oferecemos depende do modo como somos tratados, nunca seremos capazes de amar o nosso inimigo. No entanto, é certamente possível ter a esperança de que ele pare de sofrer e seja feliz!
Como conciliar esse amor incondicional e imparcial com o fato de que temos na nossa existência relações preferenciais com certas pessoas? Tomemos o sol como exemplo. Ele brilha para todos, com o mesmo calor e a mesma claridade, em todas as direções. Mas há seres que, por diversas razões, se encontram mais perto dele e que, por isso, recebem mais calor. Mas em nenhum momento essa situação privilegiada é uma exclusão. Apesar das limitações inerentes a qualquer metáfora, compreendemos que é possível gerar em si mesmo uma bondade a partir da qual chegamos a olhar para todos os seres como se fossem pais, mães, irmãos, irmãs ou filhos. No Nepal, por exemplo, chamamos qualquer mulher mais velha do que nós de “grande irmã”, e a mulher mais nova, de “pequena irmã”. Essa bondade aberta, altruísta e atenciosa, longe de diminuir o amor que sentimos por aqueles que nos são mais próximos, só o faz aumentar, aprofundar-se e ficar ainda mais belo.
É claro que temos que ser realistas – concretamente é impossível manifestar da mesma maneira a nossa afeição e o nosso amor por todos os seres vivos. É normal que os efeitos do nosso amor envolvam mais determinadas pessoas do que outras. No entanto, não há razão para que uma relação especial que temos com um amigo ou um companheiro limite o amor e a compaixão que sentimos por todas as pessoas. A essa limitação, quando surge, damos o nome de apego. O apego é nocivo na medida em que, sem propósito algum, restringe o campo de ação do amor altruísta. É como se o sol deixasse de brilhar em todas as direções e se reduzisse a um estreito feixe de luz. O apego é fonte de sofrimento porque o amor egoísta se bate contra as barreiras que ele mesmo levantou. A verdade é que o desejo possessivo e exclusivista, a obsessão e o ciúme só têm sentido no universo fechado do apego. O amor altruísta é a mais expressão da natureza humana, quando essa natureza não é viciada, obscurecida e distorcida pelas manipulações do ego. O amor altruísta abre uma porta interior que torna inoperante o sentimento de importância de si mesmo e, portanto, também o medo desaparece. Ele nos permite dar alegremente e receber com gratidão.
O trabalho com o apego e o desejo
Para compreender como o sofrimento aparece, pratique observar a sua mente. Comece simplesmente deixando-a relaxar. Sem pensar no passado nem no futuro, sem sentir esperança nem medo em relação a isto ou aquilo, deixe que ela repouse confortavelmente, aberta e natural. Nesse espaço da mente não há problemas, não há sofrimento. Então, alguma coisa prende sua atenção – uma imagem, um som, um cheiro. Sua mente se subdivide em interno e externo, “eu” e “outro”, sujeito e objeto. Com a simples percepção do objeto, não há ainda nenhum problema. Porém, quando você se foca nele, nota que é grande ou pequeno, branco ou preto, quadrado ou redondo. Então, você faz um julgamento – por exemplo, se o objeto é bonito ou feio. Tendo feito esse julgamento, você reage a ele: decide que gosta ou não gosta do objeto.
É aí que o problema começa, pois “Eu gosto disto” conduz a “Eu quero isto”. Igualmente, “Eu não gosto disto” conduz a “Eu não quero isto”. Se gostamos de alguma coisa, se a queremos e não podemos tê-la, nós sofremos. Se a queremos, a obtemos e depois a perdemos, nós sofremos. Se não a queremos, mas não conseguimos mantê-la afastada, novamente sofremos. Nosso sofrimento parece ocorrer por causa do objeto do nosso desejo ou aversão, mas realmente não é assim – ele ocorre porque a mente se biparte na dualidade sujeito-objeto e fica envolvida com querer ou não querer alguma coisa.
Com freqüência, pensamos que o único meio de criar felicidade é tentando controlar as circunstâncias externas da nossa vida, tentando consertar o que nos parece errado ou nos livrar de tudo o que nos incomoda. Mas o verdadeiro problema encontra-se em nossa reação a estas circunstâncias. O que temos que mudar é a mente e a maneira como ela vivencia a realidade.
Nossas emoções nos empurram de um extremo a outro: da excitação para a depressão, de experiências boas para ruins, da felicidade para a tristeza – um constante ir e vir.
O emocionalismo é um subproduto da esperança e do medo, do apego e da aversão. Temos esperança porque estamos apegados a alguma coisa que queremos. Temos medo porque temos aversão a alguma coisa que não queremos. Precisamos interromper as oscilações extremadas do pêndulo emocional para podermos encontrar um eixo de equilíbrio.
Quando começamos pela primeira vez nosso trabalho com as emoções, aplicamos o princípio de que o ferro corta o ferro, o diamante corta o diamante. Usamos o pensamento para transformar o pensamento. Um pensamento raivoso pode ter como antídoto um outro que seja compassivo ao passo que o desejo pode ter seu antídoto na contemplação da impermanência.
No caso do apego, comece examinando o que é o objeto ao qual você está apegado. Por exemplo, pode ser que, depois de muito esforço, você consiga se tornar famoso, pensando que isso o fará feliz. Então, sua fama provoca inveja em alguém que tenta matá-lo. Aquilo que você trabalhou tanto para criar passa a ser a causa do seu próprio sofrimento. Ou pode ser que você trabalhe com afinco para se tornar rico, pensando que isso irá trazer-lhe felicidade, para então ver todo o seu dinheiro se perder. A perda da riqueza em si não é a causa do sofrimento, mas, sim, o apego a querer possuí-la.
Podemos reduzir o apego contemplando a impermanência. É certo que o objeto ao qual estamos apegados, seja qual for, irá mudar ou se perder. Uma pessoa talvez morra ou vá embora, um amigo pode se tornar inimigo, um ladrão pode roubar seu dinheiro. Mesmo o nosso corpo, ao qual estamos apegados em grau máximo, irá embora um dia. Saber disso não só ajuda a diminuir nosso apego, como também nos proporciona maior apreciação das coisas que temos, enquanto as temos. Por exemplo, não há nada de errado com o dinheiro em si, mas, se nos apegarmos a ele, sofremos quando o perdemos. Em vez disso, podemos apreciá-lo enquanto durar, desfrutar dele e ter prazer em compartilhá-lo com os outros, sabendo, ao mesmo tempo, que ele é impermanente. Então, quando o perdermos, o pêndulo emocional não fará um movimento tão largo em direção à tristeza.
Imagine duas pessoas que compram o mesmo tipo de relógio, no mesmo dia, na mesma loja. A primeira pessoa pensa, “Este relógio é muito bonito. Vai me ser útil, mas pode ser que não dure muito tempo”.
A segunda pessoa pensa, “Este é o melhor relógio que já tive. Aconteça o que acontecer, não posso perdê-lo nem deixar que se quebre”. Se ambas pessoas perderem o seu relógio, aquela que está apegada ficará muito mais contrariada que a outra.
Se somos enganados pela vida e depositamos grande valor em uma coisa ou outra, podemos nos pegar lutando por aquilo que queremos, opondo-nos a tudo e a todos. Podemos pensar que aquilo por que lutamos é duradouro, verdadeiro e real, mas não é. É impermanente, não é verdadeiro, não é duradouro e, em última análise, sequer é real.
Nossa vida pode ser comparada a uma tarde num shopping center. Andamos pelas lojas, conduzidos por nossos desejos, pegando coisas das prateleiras e as jogando em nossas cestas. Passeamos de um lado para outro, olhando tudo, querendo e desejando. Vemos uma ou duas pessoas, talvez sorrimos, e seguimos adiante, sem nunca mais vê-las.
Impelidos pelo desejo, deixamos de apreciar e valorizar aquilo que já temos. Precisamos nos dar conta de que o tempo que temos com aqueles que nos são caros – nossos amigos, nossos parentes, nossos colegas de trabalho -, é muito curto. Mesmo se vivêssemos até cento e cinqüenta anos, isto seria muito pouco tempo para desfrutar da nossa oportunidade humana e fazermos uso dela.
Aqueles que são jovens pensam que sua vida será longa e os velhos pensam que a vida terminará logo. Mas não podemos pressupor essas coisas. Nossa vida vem com uma data de expiração embutida. Há muitas pessoas fortes e saudáveis que morrem jovens, enquanto muitos que são velhos, doentes e debilitados continuam vivendo dia após dia. Sem saber quando iremos morrer, precisamos cultivar apreciação e aceitação das coisas que temos, enquanto as temos, em vez de ficarmos procurando defeitos em nossas experiências e buscarmos, incessantemente, preencher nossos desejos.
Se começamos a nos preocupar se o nosso nariz é grande ou pequeno demais, deveríamos pensar, “E se eu não tivesse cabeça – isso sim seria um problema!” Enquanto tivermos vida, deveríamos nos regozijar. Se nem tudo sai exatamente como gostaríamos, podemos aceitar isso. Se contemplarmos a impermanência em profundidade, paciência e compaixão irão aparecer. Iremos nos apegar menos à verdade aparente das nossas experiências, e nossa mente se tornará mais flexível. Ao nos darmos conta de que um dia este corpo vai ser enterrado ou cremado, vamos nos regozijar com cada momento que tivermos, em vez de fazermos infelizes a nós mesmos ou aos outros.
Agora vivemos contaminados pela infecção do “eu-meu”, uma condição causada pela ignorância. Nossa atitude auto-centrada e nossos pensamentos de auto-importância tornaram-se hábitos muito fortes. A fim de mudá-los, precisamos alterar nosso foco. Em vez de ficarmos preocupados com “eu” o tempo todo, devemos redirecionar a atenção para “você” ou “ele” ou “os outros”. Com a redução da auto-importância, diminui também o apego que resulta dela. Quando pomos o foco da nossa atenção fora de nós mesmos, isso nos leva, ao final, a compreender a igualdade que há entre nós e todos os demais seres. Todos querem ter felicidade, ninguém quer sofrer. O apego à nossa própria felicidade amplia-se para se tornar apego à felicidade de todos.
Até agora nossos desejos tenderam a ser muito superficiais, egoístas e imediatistas. Se tivermos que querer algo, então que seja nada menos do que a completa iluminação de todos os seres. Eis aí algo digno de ser desejado. Recordarmo-nos continuamente do que verdadeiramente vale a pena querer é um importante elemento da prática espiritual.
Desejo e apego não mudam da noite para o dia. Porém, o desejo se torna menos comum à medida que redirecionamos nossos anseios mundanos para a aspiração de fazer tudo o que está a nosso alcance para ajudar todos os seres a encontrar felicidade permanente. Não temos que abandonar os objetos habituais dos nossos desejos – relacionamentos, riqueza, fama -, mas, na medida em que contemplamos sua impermanência, ficamos menos apegados a eles. Se temos a atitude de nos regozijarmos com nossa sorte quando eles aparecem, e ao mesmo tempo, reconhecemos que não irão durar, começamos a desenvolver qualidades espirituais.
Com o tempo, na proporção em que nossa prática de meditação amadurece, podemos tentar uma abordagem diferente da contemplação, diferente de usar o pensamento para transformar o pensamento: revelar a natureza mais profunda ou o princípio de sabedoria das emoções no ato delas surgirem.
Se você estiver no meio de um ataque de desejo – alguma coisa prendeu sua mente e você precisa tê-la -, não conseguirá se livrar do desejo tentando reprimi-lo. Em vez disso, você pode olhar através do desejo, começando a examinar o que ele é. Quando o desejo aparece na mente, pergunte-se, “De onde ele vem? Onde ele permanece? Será que ele pode ser descrito? Será que ele tem cor, forma ou contorno? Quando desaparece, para onde ele vai?”.
Essa situação é interessante. Você pode dizer que o desejo existe, mas se buscar pela experiência, não consegue pôr a mão nela. Por outro lado, se disser que ele não existe, estará negando o fato óbvio de que você está sentindo desejo. Você não pode dizer que valem “ambas” as coisas ou “nenhuma” delas, que ele tanto existe quanto não existe, ou que ele nem existe nem não existe. Este é o significado da verdadeira natureza do desejo, além dos extremos da mente conceitual.
É nossa incapacidade de compreender a natureza essencial de uma emoção quando ela surge, que nos mete em dificuldades. Uma vez que consigamos fazer isso, a emoção tende a se dissolver. Então, não a estaremos reprimindo nem incentivando. Estaremos simplesmente olhando com clareza para o que ocorre. Se pusermos de lado, por um tempo, um copo com água turva, ela vai se assentar por si só e ficar transparente. Em vez de julgarmos a experiência do desejo, olhamos diretamente para sua natureza, o que se chama “liberá-lo em sua própria base”.
Cada uma das emoções negativas ou venenos mentais possui uma pureza intrínseca que não reconhecemos por estarmos tão acostumados à sua aparência de emoção. A verdadeira natureza dos cinco venenos – ignorância, apego, aversão, inveja e orgulho – são as cinco sabedorias. Da mesma forma que um veneno pode ser ingerido como remédio para se obter cura, cada veneno da mente, se trabalhado adequadamente, pode ser remetido à sua natureza de sabedoria e, assim, incrementar nossa prática espiritual.
Se, em meio à intensidade do desejo, você simplesmente relaxar, sem remover sua atenção, aquele espaço da mente chama-se sabedoria discriminativa. Você não abandona o desejo – antes, revela sua natureza de sabedoria.
Perguntas e Respostas
PERGUNTA: Não estou certo de que entendo o que  quer dizer com “liberar uma emoção em sua própria base”.
RESPOSTA: Nosso hábito, quando uma emoção aparece, é ficarmos envolvidos em analisar e reagir à sua causa aparente: o objeto externo. Se, em vez disso, nós simplesmente – sem apego ou aversão, ódio ou envolvimento – descascarmos e abrirmos a emoção, iremos revelar e vivificar sua natureza de sabedoria. Quando estamos nos sentindo inchados, com o rei na barriga, em vez de nos entregarmos ao nosso orgulho ou afastá-lo, relaxamos a mente e revelamos a natureza intrínseca do orgulho, que é a sabedoria da equanimidade.
Ao trabalhar com as emoções, podemos empregar diferentes métodos. Quando nossa mente está mergulhada na dualidade, na percepção sujeito-objeto, podemos cortar o ferro com o ferro: aplicamos um pensamento positivo como antídoto de um negativo, o apego à felicidade dos outros como antídoto do apego à nossa própria felicidade. Se formos capazes de relaxar o hábito da mente à dualidade, poderemos experimentar a verdadeira essência ou “base” de uma emoção, e assim “liberá-la em sua própria base”. Assim, seu princípio de sabedoria é revelado: o orgulho como a sabedoria da equanimidade; a inveja como a sabedoria que tudo realiza; o apego e o desejo como a sabedoria discriminativa; a raiva e aversão como a sabedoria semelhante ao espelho; e a ignorância como a sabedoria do darmadatu, a sabedoria da verdadeira natureza da realidade.
PERGUNTA:  como a contemplação da impermanência reduz o apego?
RESPOSTA: Imagine um adulto e uma criança que constroem um castelo de areia na praia. O adulto nunca chega a considerar o castelo como permanente ou real, e não se apega a ele. Quando uma onda vem e leva embora o castelo, ou aparecem outras crianças e o derrubam com pontapés, o adulto não sofre. Mas a criança passou a pensar nele como uma casa de verdade que vai durar para sempre, e, portanto, sofre quando o perde.
Como a criança, simulamos por tanto tempo que a nossa experiência é estável e confiável que o nosso apego a ela é muito grande, e sofremos quando ela muda. Se mantivermos consciência da impermanência, então nunca seremos completamente enganados pelos fenômenos do samsara.
Se você contemplar o fato de que não lhe resta um período muito longo de vida, isso irá ajudá-lo. Você pensará, “No tempo que me sobra, por que seguir essa raiva ou apego que apenas produzirão mais confusão, fantasias e visões equivocadas?
Se eu levar o que é impermanente tão a sério, tentando agarrar isto ou afastar aquilo de mim, vou estar apenas imaginando ser sólido o que não é. Vou estar apenas complicando e perpetuando ainda mais as ilusões e enganos do samsara. Não vou fazer isto! Vou usar este apego ou esta aversão, este orgulho ou esta inveja como prática”. Prática espiritual não quer dizer apenas ficar sentado em uma almofada de meditação. Quando você está junto da experiência do desejo ou da raiva, bem onde a mente está ativa, é aí que você pratica, a cada momento, a cada passo da sua vida.
PERGUNTA: Ao contemplar a impermanência, percebo que meu apego diminui em certa medida, mas pergunto: até onde devo ir ao me desapegar das coisas?
RESPOSTA: Você precisa saber discriminar com o que lida em primeiro lugar. Ao final, talvez você possa se desapegar de tudo, mas comece abandonando os venenos da mente – por exemplo, a raiva. Em vez de pensar, “Por que lavar estes pratos, eles são impermanentes?” solte-se de sua raiva por ter que os lavar. Compreenda também que tudo o que surge na mente e desencadeia sua raiva é impermanente. A própria raiva é impermanente. As coisas que alguém diz a você e que o afetam de modo negativo, também são impermanentes. Perceba que são apenas palavras, sons, não algo duradouro.
O próximo passo é abandonar o apego a que a coisas sejam do seu jeito. Quando você compreende a impermanência, não importa tanto que as coisas saiam como você pensa que deveriam. Se saem, tudo bem. Se não saem, isto também está bem.
Quando você pratica assim, a mente lentamente vai adquirindo maior equilíbrio. Ela não vira para o direito ou para o avesso, conforme você obtenha ou não aquilo que quer.
PERGUNTA: Há algo de errado em ficarmos alegres ou tristes, em sentirmos nossas emoções?
RESPOSTA: Se, ao vivermos a felicidade, nós nos recordamos de que ela é impermanente, que em um dado momento irá desaparecer, isso nos ajudará a prezá-la e a desfrutar dela enquanto durar.
Ao mesmo tempo, não ficaremos tão apegados a ela e nem fixados nela – não experimentaremos tanta dor quando ela se for.
De igual modo, quando vivemos dor, mágoa ou perda, deveríamos nos lembrar de que essas coisas também são impermanentes, o que alivia nosso sofrimento. Portanto, o que nos conserva equilibrados é a consciência constante da impermanência.
PERGUNTA: O “eu” continua presente quando ampliamos o foco do nosso apego para incluir as necessidades dos outros?
RESPOSTA: Se você estiver preso por cordas amarradas com muito nós, para se soltar terá que desfazer os nós um a um, na ordem inversa em que foram originalmente feitos. Em primeiro lugar, você desmanchará o último nó, depois o penúltimo, e assim por diante, até desfazer o primeiro, aquele que está mais próximo de você.
Nós estamos atados por muito nós, inclusive por muito tipos de apego. Em termos ideais, não deveríamos nos prender a coisa alguma, mas, como não é esse o caso, usamos o apego para cortar o apego. Começamos desfazendo o último nó: substituindo o apego às nossas próprias necessidades e desejos por apego à felicidade dos outros.
Precisamos compreender que o apego egoísta, mais cedo ou mais tarde, criará problemas. Se você estiver apegado a suas próprias necessidades e desejos, se você gosta de estar feliz e não gosta de sofrer, então, quando alguma coisa menor sai errada, parece gigantesca. Você se debruça sobre ela da manhã à noite, exacerbando o problema. Uma trinca numa xícara começa a parecer o Grand Canyon quando examinada sob o microscópio de sua constante atenção.
Este foco auto-centrado é, em si, um tipo de meditação. Meditação significa trazer algo de volta à mente, vez após vez. Se repetimos pensamentos virtuosos e repousamos na natureza da mente, isso pode levar à iluminação. Mas, quando a meditação está voltada para a importância da nossa pessoa, apenas produz sofrimento sem fim. O fato de nos concentrarmos em nossos problemas pode mesmo resultar em suicídio, pois podemos ficar tão tomados por nosso sofrimento que a vida parece insuportável e sem propósito. 
Portanto, precisamos começar reduzindo nosso foco auto-centrado e nossos pensamentos de auto-importância. Para isso, nos recordamos de que não somos os únicos que querem ser felizes – todos querem. Embora os outros busquem a felicidade, pode ser que não saibam como fazer para consegui-la, enquanto que nós, se temos alguma compreensão do caminho espiritual, talvez possamos ajudá-los e apoiá-los em seus esforços.
Nós nos lembramos de que, certamente, encontraremos problemas. Somos humanos. Todavia, embora surjam dificuldades, não devemos dar força a elas. Todos têm problemas, muitos deles piores do que os nossos. À medida que contemplamos isso, nossa visão se expande para abarcar o sofrimento dos outros. À medida que a compaixão se aprofunda, o implacável foco auto-centrado se reduz; aumenta nossa intenção de ajudar os outros e a capacidade de fazer isso.
Se estivermos com o corpo doente, é recomendável ficarmos apegados ao remédio que irá nos curar. Porém, uma vez que tenhamos sarado, esse apego precisa ser cortado. Caso contrário, o próprio remédio que nos curou poderá nos deixar doente novamente. Agora, para cortarmos o apego à nossa pessoa, usamos como remédio a atitude de nos apegarmos a criar benefícios para os outros. Empregamos o apego para transformar o apego. Ao final, se tivermos que alcançar a iluminação, o apego em si precisa ser cortado.
PERGUNTA: Como podemos mudar nosso hábito de nos fixarmos nas experiências passadas?
RESPOSTA: Nenhuma experiência dura muito. Mas a sustentamos com nossos conceitos e emoções; nos agarramos a ela, revolvendo-a em nossa mente. Quando isso acontece, é preciso mudar a direção de nossos pensamentos. Se percebermos que nos fixamos no fato de alguém nos ter feito mal, voltamos a mente para a compaixão, pensando: “Ele pode ter me ferido, mas, perdido nas projeções da mente confusa e iludida, na verdade, em vez de se beneficiar, ele se prejudicou, contrariando seu próprio desejo de felicidade”.
Também voltamos a mente para a impermanência. Embora alguém tenha nos elogiado ou nos culpado por alguma coisa, suas palavras foram apenas como um eco. Como tudo mais, palavras vêm e vão. Reconhecendo sua impermanência, damos menos solidez a elas e as esquecemos mais facilmente.
De maneira, mudamos o hábito de nos fixarmos nas experiências passadas. Não é suficiente direcionar a mente apenas uma ou duas vezes. Precisamos fazer isso centenas de vezes. Seja qual for o poder dado aos pensamentos do passado, precisamos redobrar o poder do antídoto contra eles.

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