Ninguém discute o fato de que é natural ter desejo e
que ele tem um papel motivacional em nossa vida. Mas há uma diferença crucial
entre as profundas aspirações que temos ao longo da nossa vida e o desejo, que
não é mais do que um avidez, um tormento, uma obsessão. O desejo pode assumir
formas infinitamente variadas: podemos desejar um copo de água fresca, alguém
que amamos, um momento de paz, a felicidade alheia; podemos também desejar a
nossa própria morte. O desejo tanto pode nutrir a nossa existência quanto envenená-la.
Ele também pode expandir, liberar-se,
aprofundar-se e até transformar-se em uma aspiração: a de fazer de si mesmo um
ser humano melhor, de trabalhar pelo bem dos outros e atingir o despertar
espiritual. É importante, assim, estabelecer uma distinção entre o desejo, que
é essencialmente uma força cega, e a aspiração, que é precedida por uma
motivação e por uma atitude. Se essa motivação é ampla e altruísta, pode ser
fonte das maiores qualidades e realizações humanas. Se é estreita e egocêntrica,
alimenta as intermináveis preocupações da vida cotidiana, que se seguem uma às
outras como ondas, desde o nascimento até a morte, não trazendo nenhuma
garantia de satisfação profunda. Quando essa motivação é negativa, pode dar
livre curso a destruições devastadoras.
Por mais natural que seja, o desejo
rapidamente se degenera em “veneno
mental”, assim que se transforma em um imperativo, uma obsessão ou um
apego incontrolável. Um desejo como esse é tão mais frustrante e alienador
quanto mais estiver em desacordo com a realidade. Quando estamos obcecados por
uma coisa ou pessoa, nós construímos erroneamente uma imagem como se ela fosse
cem por cento desejável e possuí-la ou desfrutá-la tornar-se uma necessidade
absoluta. A avidez não causa apenas tormentos e angústias; essa posse, ou
poderíamos até dizer essa “possessão” daquilo que desejamos, em qualquer
situação, só pode ser precária, momentânea, e está sob constante ameaça. É
também ilusória, no sentido de que em última análise temos muito pouco controle
sobre aquilo que pensamos possuir. Como ensinou o Buda: “Vítima do desejo, como
um macaco na floresta, você salta de galho em galho sem jamais encontrar uma
fruta, e de vida sem jamais encontrar a paz”.
Os desejos apresentam diferentes
graus de duração e intensidade. Um desejo menor, como o de tomar uma xícara de
chá ou um bom banho quente, pode, na maior parte das vezes, ser satisfeito com
facilidade, sendo frustrado apenas se as condições externas forem muito
contrárias. Há ainda desejos como o de ser aprovado em um exame, comprar um
carro ou uma casa, quando a realização pode apresentar algumas dificuldades
possíveis de vencer pela perseverança e engenhosidade. Finalmente, existe um
nível mais básico de desejo, como o de construir uma família, ser feliz na companhia
de alguém que escolhemos ou trabalhar com algo de que gostamos.
Realizar esses desejos requer muito
tempo, e a quantidade de vida gerada por eles depende tanto das nossas
aspirações mais profundas quanto da orientação que pretendemos dar à nossa vida.
Queremos que as nossas ações tragam felicidade para a nossa vida ou só buscamos
ganhar dinheiro e conseguir um certo status na sociedade? Estabelecemos
com nosso cônjuge uma relação de posse ou de reciprocidade altruísta? Qualquer
que seja a nossa escolha, participamos todos os dias e em qualquer lugar da
dinâmica do desejo.
Em nossos dias, o desejo nunca para de
ser alimentado e amplificado pela imprensa, pelo cinema, pela literatura e pela
publicidade. Ele nos faz dependentes da intensidade das nossas emoções, por
conduzir apenas satisfações de curta duração. Não temos, por outro lado, nem
mesmo tempo de avaliar a medida da frustação que nos advém de todos os desejos
irrealizáveis, porque outras solicitações logo chegam para substituí-los; distraídos,
deixamos sempre para depois esse exame, como também as ações que poderiam nos
trazer um sentimento de plenitude digno desse nome. E o carrossel continua a
girar.
Em Hong Kong alguns desses jovens leões do mercado
financeiro, que dormem no chão do escritório em sacos de dormir para poder
acordar no meio da noite e, ligados nos computadores, “pegar” a Bolsa de Nova
Iorque antes do fechamento. Também eles, à sua maneira, tentam ser felizes, mas
sem muito sucesso. Um deles me confidenciou que vai para a praia uma ou dias
vezes por ano e fica olhando para o mar, quase surpreendido, vendo como é belo.
Nesses momentos acaba refletindo: “Como é estranha a minha vida… e, no entanto,
lá vou eu de novo na segunda-feira de manhã”. Falta de senso de prioridade?
Falta de coragem? Ficamos grudados na imagem refletida da ilusão, sem usar o
tempo livre que nos resta para permitir que, das profundezas mais abissais de
nós mesmos, surja a questão: “O que eu realmente quero da minha vida?” Uma vez
que tenhamos obtidos uma resposta, sempre haverá tempo para pensar sobre como
conseguir o que se quer. Mas não é triste e trágico abafar essa questão?
O DESEJO ALIENANTE
O budismo não recomenda a abolição dos desejos simples
nem das aspirações essenciais, mas a obtenção da liberdade no que tange aos
desejos escravizadores, aqueles que nos trazem uma multidão de tormentos inúteis.
O desejo de alimentar-se quando se tem fome, a aspiração de trabalhar pela paz
do mundo, a sede de conhecimento, o desejo de partilhar a nossa vida com os
entes queridos, o ânimo que nos incita à liberação do sofrimento: desde que
esses desejos não sejam matizados pela avidez e não exijam que obtenhamos
aquilo que não pode ser obtido, todos eles podem contribuir para a nossa
satisfação profunda. Quando temos uma coisa, queremos uma segunda, e depois uma
terceira, e assim por diante. Como terminará isso? Só a derrota ou o cansaço
podem fazer cessar, momentaneamente, essa sede de posses, de sensações ou de
poder.
OS MECANISMOS DO DESEJO
A sede de sensações prazerosas é fácil de instalar-se na mente, já
que o prazer é obsequioso, amável e está sempre pronto a oferecer-nos os seus
serviços. Ele é atraente, inspira confiança e com algumas imagens convincentes
consegue afastar qualquer hesitação. O que deveríamos temer em uma oferta tão
tentadora? Nada é mais fácil do que tomar o caminho do prazer. Mas a exultação
desses primeiros passos dura pouco e logo dá lugar à decepção de nossas
expectativas ingênuas e ao sentimento de solidão que acompanha a saciedade dos
sentidos. Os prazeres, uma vez satisfeitos, não permanecem, não são
acumuláveis, não se conservam e não frutificam: eles desaparecem. Não é nada
realista esperar que algum dia eles nos tragam uma felicidade duradoura.
Arthur Schopenhauer, o grande filósofo
pessimista, declarou: “Todo desejo nasce de uma falta, de um estado ou uma
condição que não nos satisfazem; portanto, enquanto não for satisfeito, ele é
sofrimento. Mas nenhuma satisfação é duradoura; ao contrário, sempre é apenas
um ponto de partida para novos desejos. Em todo lugar, vemos desejos sendo
frustrados e impedidos de se realizar, de diversas maneiras; por toda parte
vemos pessoas lutando por eles, e assim eles sempre aparecem como sofrimento.
Não há término para o esforço, não há medida e não há fim para o sofrimento.” 1
Essa afirmação é verdadeira mas incompleta. Ela parte do princípio de que não
podemos escapar do desejo e do sofrimento por ele perpetuado. Para superar essa
condição, precisamos saber como o desejo é criado.
A primeira constatação é de que todo
desejo apaixonado (não estamos falando aqui de sensações primárias como a fome
ou a sede) é precedido por um sentimento e uma representação mental. A formação
dessa imagem pode ser desencadeada por um objeto exterior (uma forma, um som,
uma textura, um cheiro ou um gosto) ou interior (uma memória ou um devaneio).
Mesmo que sejamos influenciados por tendências latentes, e mesmo que o desejo –
primariamente sexual – esteja inscrito na nossa constituição física, ele não
pode se expressar sem uma representação mensal. Ele pode ser voluntário ou,
aparentemente, se impor sobre a nossa imaginação; pode se formar lentamente ou
tão rápido quanto a luz, sub-reptícia ou abertamente; mas a representação
sempre precede o desejo ativo, porque o seu objeto deve se refletir nos nosso
pensamentos. Por influência do desejo consideramos uma dada pessoa como
inerentemente desejável e vemos suas qualidades de maneira exagerada, enquanto
minimizamos seus defeitos. “O desejo embeleza os objetos sobre os quais pousa
suas asas de fogo”, escreveu Anatole France. Não podemos desejar uma sensação
se não a considerarmos agradável. Compreender esse processo nos ajuda a
acelerar o diálogo interior que nos permitirá superar o desejo aflitivo.
Esse ponto de vista do budismo é próximo àquele
apresentado pelas ciências cognitivas. Segundo Aaron Beck, as emoções são sempre
geradas pela cognição e não o contrário. Pensar em uma pessoa atraente dá
origem ao desejo, pensar no perigo gera o medo, pensar em uma perda provoca
tristeza e pensar que um limite foi transgredido desencadeia a raiva. Quando
sentimos uma dessas emoções, não é muito difícil reconstituir o encadeamento de
pensamentos que conduziu a ela.
Por sua parte, Seligman afirma: “Há
trinta anos, a revolução trazida pela psicologia cognitiva derrubou ao mesmo
tempo Freud e os behavioristas, pelo menos nos meios acadêmicos [...]. Segundo
a teoria freudiana clássica, com efeito, são as emoções que determinam o
conteúdo dos pensamentos.” 2 Este último ponto de vista talvez seja
correto nos casos das crises emocionais que, à primeira vista, nos parecem
irracionais; nas crises de angústia agudas; ou nas fobias graves que são a
expressão de fixações formadas no passado. Isso não diminui o fato de que essas
tendências resultem de uma acumulação de imagens e de pensamentos.
Geralmente, uma vez que o desejo
começou a se estabelecer na mente por meio das imagens mentais a ele ligadas,
ou nós o satisfazemos ou o reprimimos. O primeiro caso representa uma
capitulação do autocontrole; o segundo, desencadeia um conflito. O conflito
interior criado pela repressão é sempre uma fonte de tormento. Há a opção de
entregar-se ao desejo. É como dizer: “Por que tornar tudo tão complicado? Vamos
satisfazer o desejo e não se fala mais nisso.” O problema é que nós nunca vamos
nos satisfazer: essa satisfação é um mero adiamento de novos desejos. As
imagens mentais vão sendo criadas pelo desejo e ressurgem com rapidez. Quanto
mais satisfazemos os nossos desejos, mais essas imagens se multiplicam, nos
invadem e aprisionam. Quanto mais água salgada bebemos, mais sedentos ficamos.
O repetido reforço das imagens mentais leva à adição e à dependência, tanto
mental quanto física. Quando chegamos a esse ponto, a experiência do desejo e
sentida mais como escravidão do que como prazer. Perdemos a nossa liberdade.
Outro exemplo clássico é o da coceira.
Queremos instintivamente aliviá-la, coçando-nos. Esse coçar é certamente
agradável no instante em que o fazemos, as a coceira não tarda a voltar, mais
irresistível do que nunca, e acabamos por voltar a nos coçar – até sangrar.
Confundimos coçar com curar. Quando decidimos não nos coçar mais, apesar do
forte anseio que persiste, não é porque a vontade não esteja presente, mas
porque aprendemos com a experiência que isso leva à dor e que se deixarmos
acalmar o fogo da coceira, o tormento logo passará. Não se trata de uma
repressão doentia, nem de uma questão de moral ou de princípios, mas de uma
ação inteligente em que preferimos um bem-estar durável à alternância entre
alívio e dor. Trata-se de uma medida prática, baseada na análise e no bom
senso. O filósofo budista indiano do século II, Nagarjuna, resume esse
processo: “É bom coçar-se quando vem a coceira, mas é melhor quando ela não
vem. É bom satisfazermos os nossos desejos, mas é melhor quando estamos livres
deles” 3. O principal obstáculo a essa liberdade é nossa resistência
a toda forma de mudança interior que acarrete esforço. Preferimos declarar,
corajosamente: “Quanto a mim, escolhi me coçar”.
É possível tornar-se mais atento à
maneira como se formam as imagens mentais e adquirir a compreensão, e depois o
controle, sobre a evolução dessas imagens. A repressão (ou a satisfação) só
acontecerá quando a intensidade do desejo tornar-se tal que seria doloroso
insistir em não realizá-lo. Mas no caso em que as imagens mentais se formam e
se desfazem naturalmente, não há nem intensificação nem repressão do desejo. No
capítulo dedicado aos antídotos, examinamos diversos métodos ou técnicas para
conservar a liberdade quando ele está presente, sem no entanto reprimi-lo. À
medida que a força das imagens mentais diminui, não nos submetemos mais ao
desejo, e isso pode ocorrer sem que tenhamos que lançar mão da menor atitude
repressiva. As poucas imagens que ainda surgirem não são mais do que centelhas
fugidias no espaço da mente.
O desejo obsessivo que costuma acompanhar o amor apaixonado deturpa a
afeição, a ternura e a alegria de apreciar e compartilhar a vida com alguém.
Ele é o oposto do amor altruísta. Surge de um egocentrismo doentio que acarinha
a si mesmo no outro ou, ainda pior, busca construir a própria felicidade às
expensas do outro. Esse tipo de desejo só quer se apropriar das pessoas, dos
objetos e das situações que o atraem para ter controle. Considera a atração
como uma característica inerente àquela pessoa, cujas qualidades ele amplia,
enquanto subestima os defeitos. “O desejo embeleza os objetos sobre os quais
pousa as suas asas de fogo” 4, ressaltou Anatole France.
A paixão romântica é o maior exemplo desse tipo de
cegueira. Eis como o dicionário define paixão: “Um amor poderoso, exclusivo e
obsessivo. Afetividade violenta que atrapalha o julgamento.” Ela é alimentada
pelo exagero e pela ilusão e insiste em que as coisas sejam outras, diferentes
de como realmente são. Como uma miragem, o objeto idealizado é insaciável e
fundamentalmente frustrante.
E quando ocorre uma louca paixão
sexual? Podemos concordar com Christian Boiron, escritor e CEO, segundo o qual
“a atração sexual não é patológica, mas também não é uma emoção. É a expressão
normal de um desejo, como a fome e a sede”. 5 Mesmo assim, ela faz
surgir em nós as mais poderosas emoções porque sua força deriva dos cinco
sentidos: visão, tato, audição, paladar e olfato. Na ausência da liberdade
interior, qualquer experiência sensorial intensa engendra apegos e nos subjuga
cada vez mais. Ela se parece com o redemoinho de um rio: nós não lhe damos
muita atenção, pensamos que podemos nadar ali sem problemas, mas quando o
turbilhão acelera e fica mais profundo, somos sugados para dentro dele sem
nenhuma esperança de resgate. Já a pessoa que consegue manter uma perfeita
liberdade interior experimenta todas essas sensações na simplicidade do momento
presente, com o deleite de uma mente livre de apegos e expectativas.
O desejo obsessivo é reflexo da
intensidade e da frequência das imagens mentais que o desencadeiam. Como um
disco riscado, fica repetindo o mesmo leitmotiv. É uma polarização do universo
mental, uma perda de fluidez, que prejudica a liberdade interior. Alain
escreveu: “Este amante desprezado, que se contorce sobre a cama em vez de
dormir e que medita sobre vinganças terríveis. O que sobraria da sua ferida se
ele não pensasse mais sobre o passado e sobre o futuro? Este ambicioso, ferido
no coração por um fracasso, onde procurará ele sua dor, senão em um passado que
ressuscita e em um futuro que inventa?” 6
Essas obsessões tornam-se muito
dolorosas quando não são atendidas e vão ficando cada vez mais fortes quando o
são. O universo da obsessão é um mundo onde a urgência se vincula à impotência.
Somos pegos por uma engrenagem de tendências e pulsões que conferem à obsessão
um caráter lancinante. Outra de suas características é a insatisfação
fundamental que ela suscita. Ela não conhece a alegria e muito menos a
plenitude ou a realização. Não poderia ser de outra maneira, já que aquele que
é vítima da obsessão insiste em buscar alívio exatamente naquelas situações que
são as causas do seu tormento. O dependente de drogas reforça a sua
dependência, o alcoólatra bebe até chegar ao delírio, o amante desprezado olha
para a foto da sua amada o dia todo. A obsessão gera um estado de sofrimento
crônico e de ansiedade, aos quais se somam, por sua vez, o desejo e a repulsa,
a insaciabilidade e a exaustão. Na verdade, ela é um adendo às causas do
sofrimento.
Estudos indicam que diferentes regiões
do cérebro e diferentes circuitos neurais estão em ação quando “queremos”
alguma coisa e quando “gostamos” dela. Isso nos ajuda a compreender pelo qual,
quando nos acostumamos a sentir certos desejos, tornamo-nos dependentes deles –
continuamos a sentir a necessidade de satisfazê-los mesmo quando já não
gostamos do sentimento que provocam. Chegamos ao ponto de desejar sem gostar,
desejar sem amar. 7 No entanto, podemos querer ser livres da
obsessão, que machuca porque nos compele a desejar aquilo que não nos agrada
mais. Podemos, também, amar alguma coisa ou alguém sem necessidade desejá-los.
Pesquisadores implantaram, em determinada região do
cérebro de ratos, eletrodos que produziam sensações de prazer quando
estimulados. Os ratos descobriram que podiam aumentar a intensidade do prazer
ao apoiar os eletrodos em uma barra. A sensação de prazer era tão intensa que
eles logo abandonaram todas as outras atividades, inclusive a alimentação e o
sexo. A busca dessa sensação transformou-se em uma sede insaciável, uma
necessidade incontrolável, e os ratos pressionaram a barra até caírem mortos de
exaustão.
DESEJO, AMOR E APEGO
Como
distinguir entre o amor verdadeiro e o apego possessivo? O amor altruísta
pode ser comparado ao som puro que vem de um copo de cristal, e o apego ao dedo
que, ao tocar a beira do copo, abafa esse som. Reconhecemos desde o princípio
que a ideia de uma mor desprovido de apego é relativamente estranha à sensibilidade
ocidental. Ser desapegado não significa que amamos menos a pessoa, mas que não
estamos centrados no amor por nós mesmos nos escondendo no amor que dizemos
sentir pelo outro. O amor altruísta é a alegria de compartilhar da vida
daqueles que estão à nossa volta – os nosso familiares, os nossos amigos, os
nossos companheiros, a nossa esposa ou o nosso marido – e contribuir para a
felicidade deles. Amamos o outro por aquilo que ele é e não através da lente
distorcida do egocentrismo. Em vez de ficarmos apegados ao outro, temos que ter
em mente a felicidade dele; em vez de esperar que ele nos traga alguma
gratificação, podemos receber o seu amor recíproco com alegria.
E depois podemos ir ampliando e
estendendo esse amor. É preciso ser capaz de amar todas as pessoas
incondicionalmente. Amar um inimigo – isso é pedir demais? Esse empreendimento
pode parecer impossível, mas baseia-se em uma observação muito simples: a de
que todos os seres, sem exceção, querem evitar o sofrimento e conhecer a
felicidade. O amor altruísta genuíno é o desejo de que isso possa se realizar.
Se o amor que oferecemos depende do modo como somos tratados, nunca seremos
capazes de amar o nosso inimigo. No entanto, é certamente possível ter a
esperança de que ele pare de sofrer e seja feliz!
Como conciliar esse amor incondicional
e imparcial com o fato de que temos na nossa existência relações preferenciais
com certas pessoas? Tomemos o sol como exemplo. Ele brilha para todos, com o
mesmo calor e a mesma claridade, em todas as direções. Mas há seres que, por
diversas razões, se encontram mais perto dele e que, por isso, recebem mais
calor. Mas em nenhum momento essa situação privilegiada é uma exclusão. Apesar
das limitações inerentes a qualquer metáfora, compreendemos que é possível gerar
em si mesmo uma bondade a partir da qual chegamos a olhar para todos os seres
como se fossem pais, mães, irmãos, irmãs ou filhos. No Nepal, por exemplo,
chamamos qualquer mulher mais velha do que nós de “grande irmã”, e a mulher
mais nova, de “pequena irmã”. Essa bondade aberta, altruísta e atenciosa, longe
de diminuir o amor que sentimos por aqueles que nos são mais próximos, só o faz
aumentar, aprofundar-se e ficar ainda mais belo.
É claro que temos que ser realistas – concretamente
é impossível manifestar da mesma maneira a nossa afeição e o nosso amor por
todos os seres vivos. É normal que os efeitos do nosso amor envolvam
mais determinadas pessoas do que outras. No entanto, não há razão para que uma
relação especial que temos com um amigo ou um companheiro limite o amor e a
compaixão que sentimos por todas as pessoas. A essa limitação, quando surge,
damos o nome de apego. O apego é nocivo na medida em que, sem propósito
algum, restringe o campo de ação do amor altruísta. É como se o sol deixasse de
brilhar em todas as direções e se reduzisse a um estreito feixe de luz. O apego
é fonte de sofrimento porque o amor egoísta se bate contra as barreiras que ele
mesmo levantou. A verdade é que o desejo possessivo e exclusivista, a obsessão
e o ciúme só têm sentido no universo fechado do apego. O amor altruísta é a
mais expressão da natureza humana, quando essa natureza não é viciada,
obscurecida e distorcida pelas manipulações do ego. O amor altruísta abre uma
porta interior que torna inoperante o sentimento de importância de si mesmo e,
portanto, também o medo desaparece. Ele nos permite dar alegremente e receber
com gratidão.
O trabalho com o apego e o desejo
Para compreender como o sofrimento aparece, pratique observar a sua
mente. Comece simplesmente deixando-a relaxar. Sem pensar no passado nem no
futuro, sem sentir esperança nem medo em relação a isto ou aquilo, deixe que
ela repouse confortavelmente, aberta e natural. Nesse espaço da mente não há
problemas, não há sofrimento. Então, alguma coisa prende sua atenção – uma
imagem, um som, um cheiro. Sua mente se subdivide em interno e externo, “eu” e
“outro”, sujeito e objeto. Com a simples percepção do objeto, não há ainda
nenhum problema. Porém, quando você se foca nele, nota que é grande ou pequeno,
branco ou preto, quadrado ou redondo. Então, você faz um julgamento – por
exemplo, se o objeto é bonito ou feio. Tendo feito esse julgamento, você reage
a ele: decide que gosta ou não gosta do objeto.
É aí que o problema começa, pois “Eu gosto
disto” conduz a “Eu quero isto”. Igualmente, “Eu não gosto disto” conduz a “Eu
não quero isto”. Se gostamos de alguma coisa, se a queremos e não podemos
tê-la, nós sofremos. Se a queremos, a obtemos e depois a perdemos, nós
sofremos. Se não a queremos, mas não conseguimos mantê-la afastada, novamente
sofremos. Nosso sofrimento parece ocorrer por causa do objeto do nosso desejo
ou aversão, mas realmente não é assim – ele ocorre porque a mente se biparte na
dualidade sujeito-objeto e fica envolvida com querer ou não querer alguma
coisa.
Com freqüência, pensamos que o único meio de criar
felicidade é tentando controlar as circunstâncias externas da nossa vida,
tentando consertar o que nos parece errado ou nos livrar de tudo o que nos
incomoda. Mas o verdadeiro problema encontra-se em nossa reação a estas
circunstâncias. O que temos que mudar é a mente e a maneira como ela vivencia a realidade.
Nossas emoções nos empurram de um extremo a outro: da excitação para a depressão, de experiências boas para ruins, da felicidade para a tristeza – um constante ir e vir.
Nossas emoções nos empurram de um extremo a outro: da excitação para a depressão, de experiências boas para ruins, da felicidade para a tristeza – um constante ir e vir.
O
emocionalismo é um subproduto da esperança e do medo, do apego e da aversão. Temos esperança
porque estamos apegados a alguma coisa que queremos. Temos medo porque temos
aversão a alguma coisa que não queremos. Precisamos interromper as oscilações
extremadas do pêndulo emocional para podermos encontrar um eixo de equilíbrio.
Quando começamos pela primeira vez
nosso trabalho com as emoções, aplicamos o princípio de que o ferro corta o
ferro, o diamante corta o diamante. Usamos o pensamento para transformar o
pensamento. Um pensamento raivoso pode ter como antídoto um outro que seja
compassivo ao passo que o desejo pode ter seu antídoto na contemplação da
impermanência.
No caso do apego, comece examinando o
que é o objeto ao qual você está apegado. Por exemplo, pode ser que, depois de
muito esforço, você consiga se tornar famoso, pensando que isso o fará feliz.
Então, sua fama provoca inveja em alguém que tenta matá-lo. Aquilo que você
trabalhou tanto para criar passa a ser a causa do seu próprio sofrimento. Ou
pode ser que você trabalhe com afinco para se tornar rico, pensando que isso
irá trazer-lhe felicidade, para então ver todo o seu dinheiro se perder. A
perda da riqueza em si não é a causa do sofrimento, mas, sim, o apego a querer
possuí-la.
Podemos reduzir o apego contemplando a
impermanência. É certo que o objeto ao qual estamos apegados, seja qual for,
irá mudar ou se perder. Uma pessoa talvez morra ou vá embora, um amigo pode se
tornar inimigo, um ladrão pode roubar seu dinheiro. Mesmo o nosso corpo, ao
qual estamos apegados em grau máximo, irá embora um dia. Saber disso não só
ajuda a diminuir nosso apego, como também nos proporciona maior apreciação das
coisas que temos, enquanto as temos. Por exemplo, não há nada de errado com o
dinheiro em si, mas, se nos apegarmos a ele, sofremos quando o perdemos. Em vez
disso, podemos apreciá-lo enquanto durar, desfrutar dele e ter prazer em
compartilhá-lo com os outros, sabendo, ao mesmo tempo, que ele é impermanente.
Então, quando o perdermos, o pêndulo emocional não fará um movimento tão largo
em direção à tristeza.
Imagine duas pessoas que compram o
mesmo tipo de relógio, no mesmo dia, na mesma loja. A primeira pessoa pensa,
“Este relógio é muito bonito. Vai me ser útil, mas pode ser que não dure muito
tempo”.
A segunda pessoa pensa, “Este é o
melhor relógio que já tive. Aconteça o que acontecer, não posso perdê-lo nem
deixar que se quebre”. Se ambas pessoas perderem o seu relógio, aquela que está
apegada ficará muito mais contrariada que a outra.
Se somos enganados pela vida e
depositamos grande valor em uma coisa ou outra, podemos nos pegar lutando por
aquilo que queremos, opondo-nos a tudo e a todos. Podemos pensar que aquilo por
que lutamos é duradouro, verdadeiro e real, mas não é. É impermanente, não é
verdadeiro, não é duradouro e, em última análise, sequer é real.
Nossa vida pode ser comparada a uma tarde num
shopping center. Andamos pelas lojas, conduzidos por nossos desejos, pegando
coisas das prateleiras e as jogando em nossas cestas. Passeamos de um lado para
outro, olhando tudo, querendo e desejando. Vemos uma ou duas pessoas, talvez
sorrimos, e seguimos adiante, sem nunca mais vê-las.
Impelidos pelo desejo, deixamos de apreciar e
valorizar aquilo que já temos. Precisamos nos dar conta de que o tempo que
temos com aqueles que nos são caros – nossos amigos, nossos parentes, nossos
colegas de trabalho -, é muito curto. Mesmo se vivêssemos até cento e cinqüenta
anos, isto seria muito pouco tempo para desfrutar da nossa oportunidade humana
e fazermos uso dela.
Aqueles que são jovens pensam que sua
vida será longa e os velhos pensam que a vida terminará logo. Mas não podemos
pressupor essas coisas. Nossa vida vem com uma data de expiração embutida. Há muitas
pessoas fortes e saudáveis que morrem jovens, enquanto muitos que são velhos,
doentes e debilitados continuam vivendo dia após dia. Sem saber quando iremos
morrer, precisamos cultivar apreciação e aceitação das coisas que temos,
enquanto as temos, em vez de ficarmos procurando defeitos em nossas
experiências e buscarmos, incessantemente, preencher nossos desejos.
Se começamos a nos preocupar se o nosso nariz é
grande ou pequeno demais, deveríamos pensar, “E se eu não tivesse cabeça – isso
sim seria um problema!” Enquanto tivermos vida, deveríamos nos regozijar. Se
nem tudo sai exatamente como gostaríamos, podemos aceitar isso. Se
contemplarmos a impermanência em profundidade, paciência e compaixão irão
aparecer. Iremos nos apegar menos à verdade aparente das nossas experiências, e
nossa mente se tornará mais flexível. Ao nos darmos conta de que um dia este
corpo vai ser enterrado ou cremado, vamos nos regozijar com cada momento que
tivermos, em vez de fazermos infelizes a nós mesmos ou aos outros.
Agora vivemos contaminados pela
infecção do “eu-meu”, uma condição causada pela ignorância. Nossa atitude
auto-centrada e nossos pensamentos de auto-importância tornaram-se hábitos
muito fortes. A fim de mudá-los, precisamos alterar nosso foco. Em vez de ficarmos
preocupados com “eu” o tempo todo, devemos redirecionar a atenção para “você”
ou “ele” ou “os outros”. Com a redução da auto-importância, diminui também o
apego que resulta dela. Quando pomos o foco da nossa atenção fora de nós
mesmos, isso nos leva, ao final, a compreender a igualdade que há entre nós e
todos os demais seres. Todos querem ter felicidade, ninguém quer sofrer. O
apego à nossa própria felicidade amplia-se para se tornar apego à felicidade de
todos.
Até agora nossos desejos tenderam a ser
muito superficiais, egoístas e imediatistas. Se tivermos que querer algo, então
que seja nada menos do que a completa iluminação de todos os seres. Eis aí algo
digno de ser desejado. Recordarmo-nos continuamente do que verdadeiramente vale
a pena querer é um importante elemento da prática espiritual.
Desejo e apego não mudam da noite para o dia. Porém,
o desejo se torna menos comum à medida que redirecionamos nossos anseios
mundanos para a aspiração de fazer tudo o que está a nosso alcance para ajudar
todos os seres a encontrar felicidade permanente. Não temos que abandonar os
objetos habituais dos nossos desejos – relacionamentos, riqueza, fama -, mas,
na medida em que contemplamos sua impermanência, ficamos menos apegados a eles.
Se temos a atitude de nos regozijarmos com nossa sorte quando eles aparecem, e
ao mesmo tempo, reconhecemos que não irão durar, começamos a desenvolver
qualidades espirituais.
Com o tempo, na proporção em que nossa
prática de meditação amadurece, podemos tentar uma abordagem diferente da
contemplação, diferente de usar o pensamento para transformar o pensamento:
revelar a natureza mais profunda ou o princípio de sabedoria das emoções no ato
delas surgirem.
Se você estiver no meio de um ataque de desejo –
alguma coisa prendeu sua mente e você precisa tê-la -, não conseguirá se livrar
do desejo tentando reprimi-lo. Em vez disso, você pode olhar através do desejo,
começando a examinar o que ele é. Quando o desejo aparece na mente,
pergunte-se, “De onde ele vem? Onde ele permanece? Será que ele pode ser
descrito? Será que ele tem cor, forma ou contorno? Quando desaparece, para onde
ele vai?”.
Essa situação é interessante. Você pode
dizer que o desejo existe, mas se buscar pela experiência, não consegue pôr a
mão nela. Por outro lado, se disser que ele não existe, estará negando o fato
óbvio de que você está sentindo desejo. Você não pode dizer que valem “ambas”
as coisas ou “nenhuma” delas, que ele tanto existe quanto não existe, ou que
ele nem existe nem não existe. Este é o significado da verdadeira natureza do
desejo, além dos extremos da mente conceitual.
É nossa incapacidade de compreender a
natureza essencial de uma emoção quando ela surge, que nos mete em dificuldades.
Uma vez que consigamos fazer isso, a emoção tende a se dissolver. Então, não a
estaremos reprimindo nem incentivando. Estaremos simplesmente olhando com
clareza para o que ocorre. Se pusermos de lado, por um tempo, um copo com água
turva, ela vai se assentar por si só e ficar transparente. Em vez de julgarmos
a experiência do desejo, olhamos diretamente para sua natureza, o que se chama
“liberá-lo em sua própria base”.
Cada uma das emoções negativas ou
venenos mentais possui uma pureza intrínseca que não reconhecemos por estarmos
tão acostumados à sua aparência de emoção. A verdadeira natureza dos cinco
venenos – ignorância, apego, aversão, inveja e orgulho – são as cinco
sabedorias. Da mesma forma que um veneno pode ser ingerido como remédio para se
obter cura, cada veneno da mente, se trabalhado adequadamente, pode ser
remetido à sua natureza de sabedoria e, assim, incrementar nossa prática
espiritual.
Se, em meio à intensidade do desejo,
você simplesmente relaxar, sem remover sua atenção, aquele espaço da mente
chama-se sabedoria discriminativa. Você não abandona o desejo – antes, revela
sua natureza de sabedoria.
Perguntas
e Respostas
PERGUNTA: Não
estou certo de que entendo o que quer
dizer com “liberar uma emoção em sua própria base”.
RESPOSTA: Nosso
hábito, quando uma emoção aparece, é ficarmos envolvidos em analisar e reagir à
sua causa aparente: o objeto externo. Se, em vez disso, nós simplesmente – sem
apego ou aversão, ódio ou envolvimento – descascarmos e abrirmos a emoção,
iremos revelar e vivificar sua natureza de sabedoria. Quando estamos nos
sentindo inchados, com o rei na barriga, em vez de nos entregarmos ao nosso
orgulho ou afastá-lo, relaxamos a mente e revelamos a natureza intrínseca do
orgulho, que é a sabedoria da equanimidade.
Ao
trabalhar com as emoções, podemos empregar diferentes métodos. Quando nossa
mente está mergulhada na dualidade, na percepção sujeito-objeto, podemos cortar
o ferro com o ferro: aplicamos um pensamento positivo como antídoto de um
negativo, o apego à felicidade dos outros como antídoto do apego à nossa
própria felicidade. Se formos capazes de relaxar o hábito da mente à dualidade,
poderemos experimentar a verdadeira essência ou “base” de uma emoção, e assim
“liberá-la em sua própria base”. Assim, seu princípio de sabedoria é revelado:
o orgulho como a sabedoria da equanimidade; a inveja como a sabedoria que tudo
realiza; o apego e o desejo como a sabedoria discriminativa; a raiva e aversão
como a sabedoria semelhante ao espelho; e a ignorância como a sabedoria do
darmadatu, a sabedoria da verdadeira natureza da realidade.
PERGUNTA:
como a contemplação da impermanência reduz o apego?
RESPOSTA: Imagine
um adulto e uma criança que constroem um castelo de areia na praia. O adulto
nunca chega a considerar o castelo como permanente ou real, e não se apega a
ele. Quando uma onda vem e leva embora o castelo, ou aparecem outras crianças e
o derrubam com pontapés, o adulto não sofre. Mas a criança passou a pensar nele
como uma casa de verdade que vai durar para sempre, e, portanto, sofre quando o
perde.
Como
a criança, simulamos por tanto tempo que a nossa experiência é estável e
confiável que o nosso apego a ela é muito grande, e sofremos quando ela muda.
Se mantivermos consciência da impermanência, então nunca seremos completamente
enganados pelos fenômenos do samsara.
Se
você contemplar o fato de que não lhe resta um período muito longo de vida,
isso irá ajudá-lo. Você pensará, “No tempo que me sobra, por que seguir essa
raiva ou apego que apenas produzirão mais confusão, fantasias e visões
equivocadas?
Se
eu levar o que é impermanente tão a sério, tentando agarrar isto ou afastar
aquilo de mim, vou estar apenas imaginando ser sólido o que não é. Vou estar
apenas complicando e perpetuando ainda mais as ilusões e enganos do samsara.
Não vou fazer isto! Vou usar este apego ou esta aversão, este orgulho ou esta
inveja como prática”. Prática espiritual não quer dizer apenas ficar sentado em
uma almofada de meditação. Quando você está junto da experiência do desejo ou
da raiva, bem onde a mente está ativa, é aí que você pratica, a cada momento, a
cada passo da sua vida.
PERGUNTA: Ao
contemplar a impermanência, percebo que meu apego diminui em certa medida, mas
pergunto: até onde devo ir ao me desapegar das coisas?
RESPOSTA: Você
precisa saber discriminar com o que lida em primeiro lugar. Ao final, talvez
você possa se desapegar de tudo, mas comece abandonando os venenos da mente –
por exemplo, a raiva. Em vez de pensar, “Por que lavar estes pratos, eles são
impermanentes?” solte-se de sua raiva por ter que os lavar. Compreenda também
que tudo o que surge na mente e desencadeia sua raiva é impermanente. A própria
raiva é impermanente. As coisas que alguém diz a você e que o afetam de modo
negativo, também são impermanentes. Perceba que são apenas palavras, sons, não
algo duradouro.
O
próximo passo é abandonar o apego a que a coisas sejam do seu jeito. Quando
você compreende a impermanência, não importa tanto que as coisas saiam como
você pensa que deveriam. Se saem, tudo bem. Se não saem, isto também está bem.
Quando
você pratica assim, a mente lentamente vai adquirindo maior equilíbrio. Ela não
vira para o direito ou para o avesso, conforme você obtenha ou não aquilo que
quer.
PERGUNTA: Há
algo de errado em ficarmos alegres ou tristes, em sentirmos nossas emoções?
RESPOSTA: Se,
ao vivermos a felicidade, nós nos recordamos de que ela é impermanente, que em
um dado momento irá desaparecer, isso nos ajudará a prezá-la e a desfrutar dela
enquanto durar.
Ao
mesmo tempo, não ficaremos tão apegados a ela e nem fixados nela – não
experimentaremos tanta dor quando ela se for.
De
igual modo, quando vivemos dor, mágoa ou perda, deveríamos nos lembrar de que
essas coisas também são impermanentes, o que alivia nosso sofrimento. Portanto,
o que nos conserva equilibrados é a consciência constante da impermanência.
PERGUNTA: O
“eu” continua presente quando ampliamos o foco do nosso apego para incluir as
necessidades dos outros?
RESPOSTA: Se
você estiver preso por cordas amarradas com muito nós, para se soltar terá que
desfazer os nós um a um, na ordem inversa em que foram originalmente feitos. Em
primeiro lugar, você desmanchará o último nó, depois o penúltimo, e assim por
diante, até desfazer o primeiro, aquele que está mais próximo de você.
Nós
estamos atados por muito nós, inclusive por muito tipos de apego. Em termos ideais,
não deveríamos nos prender a coisa alguma, mas, como não é esse o caso, usamos
o apego para cortar o apego. Começamos desfazendo o último nó: substituindo o
apego às nossas próprias necessidades e desejos por apego à felicidade dos
outros.
Precisamos
compreender que o apego egoísta, mais cedo ou mais tarde, criará problemas. Se
você estiver apegado a suas próprias necessidades e desejos, se você gosta de
estar feliz e não gosta de sofrer, então, quando alguma coisa menor sai errada,
parece gigantesca. Você se debruça sobre ela da manhã à noite, exacerbando o
problema. Uma trinca numa xícara começa a parecer o Grand Canyon quando
examinada sob o microscópio de sua constante atenção.
Este
foco auto-centrado é, em si, um tipo de meditação. Meditação significa trazer
algo de volta à mente, vez após vez. Se repetimos pensamentos virtuosos e
repousamos na natureza da mente, isso pode levar à iluminação. Mas, quando a
meditação está voltada para a importância da nossa pessoa, apenas produz
sofrimento sem fim. O fato de nos concentrarmos em nossos problemas pode mesmo
resultar em suicídio, pois podemos ficar tão tomados por nosso sofrimento que a
vida parece insuportável e sem propósito.
Portanto,
precisamos começar reduzindo nosso foco auto-centrado e nossos pensamentos de
auto-importância. Para isso, nos recordamos de que não somos os únicos que
querem ser felizes – todos querem. Embora os outros busquem a felicidade, pode
ser que não saibam como fazer para consegui-la, enquanto que nós, se temos
alguma compreensão do caminho espiritual, talvez possamos ajudá-los e apoiá-los
em seus esforços.
Nós
nos lembramos de que, certamente, encontraremos problemas. Somos humanos.
Todavia, embora surjam dificuldades, não devemos dar força a elas. Todos têm
problemas, muitos deles piores do que os nossos. À medida que contemplamos
isso, nossa visão se expande para abarcar o sofrimento dos outros. À medida que
a compaixão se aprofunda, o implacável foco auto-centrado se reduz; aumenta
nossa intenção de ajudar os outros e a capacidade de fazer isso.
Se
estivermos com o corpo doente, é recomendável ficarmos apegados ao remédio que
irá nos curar. Porém, uma vez que tenhamos sarado, esse apego precisa ser
cortado. Caso contrário, o próprio remédio que nos curou poderá nos deixar
doente novamente. Agora, para cortarmos o apego à nossa pessoa, usamos como
remédio a atitude de nos apegarmos a criar benefícios para os outros.
Empregamos o apego para transformar o apego. Ao final, se tivermos que alcançar
a iluminação, o apego em si precisa ser cortado.
PERGUNTA: Como
podemos mudar nosso hábito de nos fixarmos nas experiências passadas?
RESPOSTA: Nenhuma
experiência dura muito. Mas a sustentamos com nossos conceitos e emoções; nos
agarramos a ela, revolvendo-a em nossa mente. Quando isso acontece, é preciso
mudar a direção de nossos pensamentos. Se percebermos que nos fixamos no fato
de alguém nos ter feito mal, voltamos a mente para a compaixão, pensando: “Ele
pode ter me ferido, mas, perdido nas projeções da mente confusa e iludida, na
verdade, em vez de se beneficiar, ele se prejudicou, contrariando seu próprio
desejo de felicidade”.
Também
voltamos a mente para a impermanência. Embora alguém tenha nos elogiado ou nos
culpado por alguma coisa, suas palavras foram apenas como um eco. Como tudo
mais, palavras vêm e vão. Reconhecendo sua impermanência, damos menos solidez a
elas e as esquecemos mais facilmente.
De
maneira, mudamos o hábito de nos fixarmos nas experiências passadas. Não é
suficiente direcionar a mente apenas uma ou duas vezes. Precisamos fazer isso
centenas de vezes. Seja qual for o poder dado aos pensamentos do passado,
precisamos redobrar o poder do antídoto contra eles.
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